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Campanha pela volta de anjos em Santa Luzia foi marco no resgaste de bens culturais


Na janela de sua casa na Rua Direita e protegida do vento frio por um xale branco, a aposentada Luzia Vieira se espanta ao ver que já se passaram 15 anos desde o retorno, a Minas, dos chamados “Anjos de Santa Luzia” – três peças sacras de madeira policromada que iriam a leilão no Rio de Janeiro (RJ) e foram impedidas de comercialização por ordem judicial. Bem humorada e preferindo não revelar a idade – “tenho juventude acumulada”, brinca –, a moradora do Centro Histórico da cidade localizada na Região Metropolitana de Belo Horizonte se orgulha do depoimento que deu na época às autoridades. 

Sem se arrepender, cita um pensamento: “A verdade é dura como um diamante e delicada como a flor de um pessegueiro”. Com isso, ela quer dizer que agiu em prol da comunidade e do patrimônio de Santa Luzia, que nasceu na época do ciclo do ouro e tem o Centro Histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). “Se os anjos andaram longe, voltaram para o lugar de origem”, afirma Luzia com a certeza do dever cumprido.
Em 25 de julho de 2003, a jornalista do Estado de Minas Anna Marina fez em sua coluna a denúncia de que peças barrocas mineiras então em poder de um colecionador nascido em Santa Luzia, na Grande BH, e radicado no Rio, iriam a leilão na capital fluminense. Ao ver as fotos dos anjos no jornal, e depois num catálogo da exposição, Luzia se lembrou de ver, quando criança, durante as coroações de Nossa Senhora, as peças que ficavam atrás do retábulo-mor. “Havia outros anjos, não sei que rumo tomaram”, diz Luzia.

Outra voz de suma importância nessa história de repercussão nacional foi a da advogada Beatriz de Almeida Teixeira, então vice-presidente da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia. Na tarde de ontem, no Santuário de Santa Luzia, Beatriz, mais conhecida como Beata, afirmou que a campanha pela volta dos anjos foi um marco na preservação e resgaste dos bens culturais em todo o país. “Foi a partir daí que houve mais diretrizes e políticas para o patrimônio cultural”, afirma Beatriz.

A presidente do Iepha, Michele Arroyo, explica que a campanha pelo resgate dos bens culturais é importante e emblemática em dois aspectos: pela articulação dos órgãos do patrimônio cultural e participação das comunidades, especialmente quanto à identificação de imagens e outros objetos. “Há, nesta ação, o encontro das responsabilidades pública e civil.”

Há 10 anos, uma portaria do Iepha buscou organizar o setor com um cadastro para reunir as informações sobre as peças desaparecidas e um detalhamento do inventário de bens de 65 igrejas, perfazendo 2,5 mil objetos sacros. “Queremos chegar a 6 mil, com fotos, descrição, iconografia, história e outros dados fundamentais para monitoramento e conservação. Esperamos avançar muito mais e, futuramente, disponibilizar as informações, pois, quando mais se divulga, mais difícil fica o extravio”, afirma a presidente.

DIVISOR DE ÁGUAS

Quem chega ao Santuário de Santa Luzia, na Praça da Matriz, no Centro Histórico, pode ver dois anjos ladeando a tarja do arco-cruzeiro e outro, o do sepulcro, no coroamento do altar de Nosso Senhor dos Passos – é bom ressaltar que essas peças teriam sido vendidas, e não roubadas. Para especialistas, a história da preservação do patrimônio cultural de Minas tem um divisor de águas caudaloso: a mobilização em Santa Luzia se propagou em todo o estado e as comunidades passaram a lutar pela volta de obras de arte e de peças sacras desaparecidas, ao longo do tempo, de igrejas, capelas, museus e prédios públicos. Foi um grito contra o furto de peças sacras e outras obras de arte que movimentam o comércio clandestino. De acordo com a Interpol, só é superado, no mundo, pelo de drogas e armas.

De forma pioneira, Minas passou a ter uma política específica para a preservação do acervo histórico, algo inédito no país, contando com a participação de instituições públicas e privadas. Outro setor que ganhou força foi o de educação patrimonial, disseminado de forma ampla na capital e no interior e com resultados positivos entre os jovens, disse ao EM o promotor de Justiça da comarca de Santa Luzia, Marcos Paulo de Souza Miranda, ex-titular da Coordenadoria das Promotorias de Justiça do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC). Na época, começaram a trabalhar de forma integrada as secretarias estaduais da Cultura e da Defesa Social, Iepha, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), polícias Federal, Militar e Civil, ministérios públicos Federal (MPF) e de Minas Gerais (MPMG), Igreja, Associação das Cidades Históricas e outros.

Em matérias diárias, a equipe de jornalistas denunciou a dilapidação dos templos barrocos, divulgando, igualmente, ações positivas, do poder público ou da comunidade, para garantir a integridades dos tesouros mineiros. Numa iniciativa do MPMG, foi criado um serviço de inteligência, com banco de dados, para localizar e identificar peças sumidas, enquanto a Interpol faz um rastreamento internacional.

Santana Mestra

A campanha pelo resgate de seus bens culturais não terminou em Santa Luzia, muito menos para a aposentada Dalma Aparecida Martins, de 94 anos. Ela aguarda, com esperança, a volta da imagem de Santana Mestra, peça de 1740 em poder de um colecionador residente no Rio e alvo de ação ajuizada pelo MPMG, em 2003. Ex-tabeliã do Cartório de Registro Civil, Dalma não sossega enquanto a imagem barroca não retornar à cidade. O caso ainda não teve o desfecho esperado e continua sob acompanhamento dos promotores de Justiça.

Considerada uma das primeiras imagens sacras de Santa Luzia, a Santana Mestra – formada por um conjunto de três peças separadas: Santa Ana, mãe de Nossa Senhora, a menina Maria e a cadeira também em madeira policromada – traz boas recordações a Dalma Martins, moradora do Centro Histórico. Nos tempos de criança, ela participava das lições de catecismo dadas pela integrante das Filhas de Maria e zeladora da Matriz de Santa Luzia, Augusta Dolabella (1904-1995), guardiã do patrimônio religioso. Os ensinamentos eram ministrados numa capela, já demolida, que ficava ao lado da cadeia, na Rua Floriano Peixoto, para a qual foram transferidos as relíquias do primitivo templo destruído por uma enchente, segundo a tradição oral.

Em agosto de 2007, Dalma Aparecida compareceu à sede do Iepha, em Belo Horizonte, para dar seu depoimento. Na época, em companhia da também luziense Maria Augusta, a Mariinha, já falecida, que deu seu depoimento, ela foi recebida pelo então vice-presidente e diretor de Conservação e Restauração da instituição Renato César de Oliveira. Em seguida, elas deram testemunho na sede do Ministério Público de Minas Gerais.

A exemplo da Santana Mestra de Santa Luzia, há outras peças sacras aguardando decisão da Justiça (veja o quadro).

ANJOS BARROCOS

Os 15 anos de resgate dos bens culturais foram documentados dia a dia pelo Estado de Minas.A partir de uma denúncia da jornalista Anna Marina, publicada em 25 de julho de 2003, sobre peças barrocas que estavam em poder de um colecionador e iriam a leilão no Rio de Janeiro (RJ), a equipe do caderno Gerais foi a campo para investigar o caso, localizando uma testemunha-chave no caso “Anjos de Santa Luzia”, que ganhou repercussão nacional. A aposentada Luzia Vieira, residente em Santa Luzia, na Grande BH, lembrava-se dos objetos sacros, que, nos tempos dela de criança, ficavam atrás do altar da matriz da cidade. A história foi parar na Justiça e em 12 de agosto daquela ano retornaram a Minas, ficando sob guarda do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha).

Fonte: Estado de Minas

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