O arraial de Santa Luzia, fundado em 1692, aproximadamente, se inseriu facilmente nas principais rotas comerciais da Estrada Real, devido ao seu posicionamento geográfico estratégico. Em pouco tempo, o povoado ganhou importância e visibilidade na região nos oitocentos, tornou-se arraial e, em 1856, tornou-se uma vila independente, separando-se de Sabará e consolidando-se como importante centro comercial. Neste mesmo período, ocorreu um dos principais movimentos liberais no Império, afetando províncias e arraiais, principalmente no sudeste do Brasil, a Revolução Liberal de 1842. Será discutido nesse artigo o contexto social, econômico e político luziense do século XIX e sua inserção na Revolução Liberal; que alterou a dinâmica da vida na vila de Santa Luzia. Além de uma discussão historiográfica sobre como a Revolução Liberal, é percebida pelos autores de diferentes vertentes historiográficas, demonstrando como podemos perceber esse movimento sob um olhar regional.
INTRODUÇÃO
Pertencente a Sabará até o século XIX, Santa Luzia se desenvolveu como importante centro comercial nas proximidades com o rio, que mais tarde foi denominado Rio das Velhas, devido à sua posição geográfica privilegiada, incorporada no que se convencionou chamar de Estrada Real. Subordinada à vila de Sabará, que se destacava no período por sua intensa atividade aurífera e por abrigar a Intendência e a Casa de Fundição da região, que são órgãos da coroa, responsáveis por regulamentar a exploração, distribuição e circulação dos metais preciosos.
Como os demais arraiais oitocentistas, Santa Luzia era composta por um centro urbano rodeado por uma zona rural, onde havia a predominância da população cativa. Havia certa equidade entre a quantidade de homens e mulheres, como sinalizado por Corrêa(2005).
A economia luziensese baseava na escravidão, no comércio e na indústria têxtil.O nome da cidade mudou ao longo do tempo, mas a memória registrou Santa Luzia, na História, como palco da Revolução Liberal de 1842. É entre as disputas políticas e econômicas que, em 1842,iniciam-se as batalhas relativas à Revolução Liberal, em Santa Luzia. Esse processo precisa ser entendido como parte de um projeto político maior, que envolvia outras províncias e regiões do Brasil que nasceu a partir da polarização entre Liberais e Conservadores, intensificado durante a passagem do Período Regencial para o Segundo Reinado.
Dessa forma, buscar-se-á compreender como essas batalhas influenciaram a vida cotidiana dos luzienses, seus desdobramentos e influências políticas, sociais e na própria história da cidade, visto que, até hoje, relatos das batalhas se fazem presentes na região, por meio da oralidade, compreendendo assim, que a história local não está alheia a história nacional, haja visto dos movimentos de interferência entre ambas.
Também nos propusemos a realizar uma revisão bibliográfica acerca das narrativas produzidas sobre a Batalha, apresentando as diferentes perspectivas historiográficas de tal evento, buscando entendê-lo sob uma ótica local. Para isso, utilizamos, principalmente, os textos escritos por Villa (2019), e Corrêa(2005).
Este artigo é fruto de pesquisas relacionadas ao projeto de pesquisa de dois graduandos voluntários no PROBIC da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, cujo tema principal é a análise da influência da baronesa Maria Alexandrina na sociedade luziense oitocentista.
O PACATO VILAREJO LUZIENSE
Em meados do século XVII, com a queda na exportação do açúcar e o início dos primeiros achados auríferos, o objetivo da coroa era estabelecer, no território brasileiro, uma colônia de exploração e não de povoamento.
Portugal via nas terras brasileiras, levando em consideração o contexto mercantil da época, a oportunidade de explorar metais preciosos, principalmente. Dessa forma, como demonstrado por Assunção (2020), grande parte das vilas mineiras se formou a partir das atividades bandeirantes e é nesse contexto que os paulistas se instalaram na região do Rio das Velhas, próximo à Santa Luzia. O bandeirante Manoel de Borba Gato, em uma de suas expedições, fundou, por volta de 1692, o arraial de Santa Luzia, que, rapidamente, se inseriu nas principais rotas comerciais da Estrada Real, devido ao seu posicionamento geográfico estratégico.
Então, entende-se que o sítio era favorável a esse assentamento, uma vez que“ o sítio de uma cidade pode ser entendido como o conjunto de elementos físicos e naturais que possibilitam o assentamento humano e posterior modificação de acordo com as necessidades da sociedade.” (BORSAGLI, CASTRO, 2019, p.136).
A posição geográfica luziense não foi aleatória, pois, além de fatores naturais, o arraial se formou próximo a zonas comerciais, favorecendo, então, seu desenvolvimento, tendo com isso uma “possibilidade de comunicação com outros assentamentos humanos” (BORSAGLI; CASTRO, 2019, p.136) Com isso, Assunção (2020) pontua que:
Além de sua posição, Santa Luzia destacou-se inicialmente por conta de um meio físico favorável. O seu distanciamento em relação à Cordilheira do Espinhaço fez com que a várzea do rio naquela região se tornasse maior, como apontado por Goulart (2009) e, com isso, mais propícia ao estabelecimento humano. Além disso, a cidade situa-se próxima a um ponto de descontinuidade das altas altitudes do Espinhaço, o que facilitava a aproximação com outras cidades que compunham a Estrada Real (ASSUNÇÃO, 2020, p.31).
Tendo isso em mente, durante o ciclo do ouro, Santa Luzia estabeleceu-se como importante centro comercial, oferecendo recursos aos viajantes que seguiam pelas rotas da Estrada Real, pois se localizava como ponto crucial na travessia Ouro Preto Diamantina, além de possibilitar fácil navegação entre o Rio das Velhas e o São Francisco. Dessa forma, a economia luziense estava mais voltada para o comércio e abastecimento interno, diferentemente de outros arraiais do século XVIII, que se dedicavam, quase exclusivamente, à mineração.
Outro fator interessante, discutido por Assunção (2020), no que diz respeito a essa característica comercial e de subsistência de Santa Luzia, é que:
“[...] o período de extração do ouro foi capaz de gerar intensos fluxos migratórios para as Minas e estabeleceruma forte economia voltada para o mercado externo, segundo era a orientação de toda a colônia"[...](ASSUNÇÃO, 2020. p. 34 apudPRADO JÚNIOR, 1992).
Dessa forma, depreende-se que Santa Luzia gerava excedentes de mercadorias que faziam parte do fluxo do comércio geral da colônia,e também das exportações para a coroa, inserindo-se, com isso, em uma rede comercial mais ampla. Essa percepção da economia agropastoril, mesmo durante os primórdios e no auge do período aurífero, é reforçada pelo revisionismo histórico dos anos 1980 que, a partir de análises regionais, econômicas e demográficas, revisita temas do passado colonial e imperial. Autores como Laura de Mello e Souza (1983), e Júnia Furtado (1999) produziram estudos, a partir da perspectiva revisionista, demonstrando a pluralidade existente na região das Minas e afirmando a dinamização agropastoril, entre outros aspectos. Santa Luzia, assim como outras regiões das Minas, tinha uma produção que abastecia o mercado interno do povoado e de seu entorno. Ainda assim, o arraial luziense permanecia sob domínio da Vila de Sabará, que se configurava como uma das principais cidades mineiras, devido à intensa exploração aurífera nessa região, além de abrigar a Casa de Fundição e a Intendência, órgãos responsáveis por controlar a produção e circulação de metais preciosos nesse período. A ruptura entre Santa Luzia e Sabará, no séculoXIX, se deu, de acordo com Assunção (2020), após uma série de conflitos entre as elites mineiras.
Os luzienses reivindicavam sua emancipação usando justificativas como a dificuldade do acesso à Vila de Sabará e, principalmente, devido a sua posição geográfica estratégica em relação às rotas comerciais. A emancipação era desejada, pois a elite queria se inserir de maneira autônoma nos processos políticos. A primeira tentativa real de emancipação se deu em 1760, contudo a coroa portuguesa recusou a petição. Somente em 1858 Santa Luzia conseguiu se emancipar de Sabará, sob protestos e resistências, pois Sabará lucrava com as atividades comerciais luzienses.
Como apontado por Assunção (2020):
“[...] conclui-se previamente que a formação de Santa Luzia como cidade se dá, nesse momento, exclusivamente por prestar suporte à infraestrutura espacial e hidrográfica necessárias à essa economia, tanto em termos de sítio geográfico como de posição.” (ASSUNÇÃO, 2020, p. 34)
Outrossim, a respeito da sociedade luziense nos séculos XVIII e XIX, pode-se dizer, de acordo com Corrêa (2005), que, no comércio, predominavam os homens livres e que as mulheres, livres e escravas, ficavam restritas às ocupações na indústria têxtil e às atividades domésticas. Assim como nos demais arraiais oitocentistas, Corrêa (2005) observa que havia um centro comercial urbano rodeado por uma zona rural, onde predominava a população cativa, Formada, em sua maioria, por homens. Vale ressaltar que toda a economia local se sustentava no escravismo. Sobrea análise da ocupação do distrito, a autora afirma:
A análise das ocupações dos habitantes do Distrito parece corroborar a hipótese de uma economia dinâmica, voltada para o artesanato e o abastecimento interno. Encontramos uma grande variedade de ocupações, dentre as quais vários ofícios ligados ao artesanato (alfaiate, sapateiro, carapina, seleiro, valeiro, santeiro, para citar alguns) e uma relativa diversificação profissional, com presença de eclesiásticos, vários músicos, quatro boticários, dois cirurgiões, dois juízes de vintena, e até floristas.(CORRÊA, 2005, p. 33).
Ademais, a população adulta luziense era composta, em sua maioria, por pessoas em situação de escravidão, ocorria uma distribuição de sexo equilibrada, em comparação às pessoas em situação de liberdade (CORREA, 2005, p. 6).
Até os 16 anos, havia certa equidade entre a porcentagem de homens e mulheres na sociedade, contudo, após essa faixa etária, havia uma predominância feminina, Corrêa (2005) explica essa ausência masculina a partir de alguns fatores como um:
[...] possível movimento migratório dos homens para outros locais. Um outro motivo para essa escassez poderia ser a evasão durante períodos de recrutamento militar, e havia também a questão do nomadismo. Outro fator para a ausência masculina: homens possuíam terras fora do distrito ali residindo, deixando apenas as mulheres e seus filhos no arraial. (CORRÊA, 2005, p. 34-350)
A análise do Censo de 1872 confirma a hegemonia feminina na vila, não só entre escravos e livres, mas entre a população em geral: eram 3.128 mulheres, o correspondente a 51,6%. Os homens eram 2.943, ou seja, 48,4%. Também a análise sobre letramento e estado civil confirma as percepções demográficas comuns nas vilas mineiras. Havia mais solteiros do que casados (34,5% dos homens e 35% das mulheres eram solteiros, enquanto apenas 12% da população era constituída por casados). Os homens que sabiam ler superam as mulheres em quase cinco vezes (6,5% dos homens de Santa Luzia sabiam ler e escrever contra apenas 1,4% das mulheres).
Art. Único. Ficam anistiados todos os crimes políticos cometidos em o ano de 1842 nas Províncias de São Paulo e Minas Gerais, e em perpétuo silêncio os processos que por motivos deles tenham instaurados. Manuel Alves Branco conselheiro de Estado, ministro e secretário de Estado encarregado interinamente dos Negócios da Justiça, o tenha assim entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 14 de março de 1844, vigésimo terceiro da Independência e do Império. (VILLA, 2019, p. 79)
Mesmo após 178 anos, a batalha entre liberais e conservadores ainda faz parte do imaginário luziense, principalmente por meio da história oral. As famílias mais tradicionais preservam as memórias e as narrativas acerca desses acontecimentos, que alteraram significativamente a dinâmica da sociedade no período. Villa (2019), em seu livro “Horizonte de eventos da batalha de Santa Luzia”, demonstra que a violência não ficou restrita aos campos de batalha, mas se estendeu por todos os âmbitos da vila, alterando até mesmo as relações econômicas, pois foi necessária uma logística para sustentar as tropas envolvidas. Cabe ressaltar, como demonstrado pelo autor, que a maior parte da população estava alheia aos acontecimentos políticos que motivaram tais conflitos, devido aos baixos índices de educação, como podemos notar no gráfico 1 –ver seção anterior -a grande maioria da população era analfabeta, e também devido à dificuldade para a circulação de notícias. Neste contexto histórico, o jogo político estava reservado às elites locais, que eram compostas pelos protagonistas do sistema,-que o eram seja por deterem poderio econômico ou pela força das tradições e títulos-, perspectiva que perdura até as primeiras décadas da república, como apontado pelo historiador José Murilo de Carvalho (2019) em “Os Bestializados_ O Rio de Janeiro e a república que não foi”, que, apesar de ter como tempo histórico o final do século XIX, nos ajuda a entender como foi formada uma população civil que era inativa e excluída do processo político.
Contudo, nota-se um esforço de ambos os lados, liberais e conservadores, para depreciar a imagem do oponente perante a sociedade (VILLA, 2019). Apesar desses fatores, a população assistia de perto aos acontecimentos da batalha e vivenciava diariamente o medo e a incerteza que surgem em momentos de conflitos. Villa (2019) traz em seu livro fragmentos dos relatos do cientista dinamarquês Peter Lund (1982), morador de Lagoa Santa, demonstrando o reflexo dos conflitos no dia a dia da sociedade mineira.
O paraíso terrestre (...) tornou-se palco de cenas que me encheram de repulsa e pavor. (...) ninguém em casa veio a ferir-se, apesar das balas que assobiavam perto dos nossos ouvidos (...) neste momento, quando escrevo isso, reina um silêncio sepulcral em torno de mim, todas as casas fechadas, as ruas vazias, nenhuma viv’ alma é vista. Alguns corpos ainda estão espalhados aqui e ali; os abutres, que nos dias de tumulto anteriores tinham desaparecido, já se deixam ver, mas eu antecipo no trabalho principal de recolher e enterrar os cadáveres. O Sol de Lagoa Santa se pôs pra mim.(LUND, 1842, apudVILLA, 2019, p.9).
Além disso, o autor também traz outras histórias acerca de eventos ocorridos nesse período de confrontos, como saques e roubos às propriedades oponentes e assassinatos de civis. Uma das fontes primárias consultadas pelo autor, e que chama atenção pela absurdez, é que atribuíram como causa da morte de Dona Francisca Marcianna de Assis e Castro, o “susto da revolução” VILLA, 2019, p. 10, grifo do autor).
Diante do exposto, percebe-se que a população esteve exposta às agruras do conflito entre liberais e conservadores pelo domínio político do Império. A última batalha da Revolução Liberal, ocorrida em Santa Luzia, fazia parte de um projeto muito maior, que envolvia outras regiões do Brasil, como a província de São Paulo e o império como um todo. Motivada por insatisfações com as políticas palacianas e conservadoras, como registrado por Barroso (1954): “[...] o que os liberais pleiteavam na verdade era pura e simplesmente o poder político [...] sobre o Império” (BARROSO 1954, p.46).
A REVOLUÇÃO LIBERAL E SUAS VERTENTES HISTORIOGRÁFICAS
Ao nos debruçarmos sobre a historiografia mineira, encontramos mitos criados e generalizações que forjam uma imagem de uma estagnação sociocultural e econômica da província mineira, principalmente durante o séculoXIX. Eduardo Paiva (2009), em seus estudos na década de 80, nos mostra uma vertente que foge desse tradicionalismo, sendo precursor de estudos revisionistas que trazem uma Minas Gerais oitocentista dinâmica, com inúmeras relações entre si e que apresenta peculiaridades regionais.
Os estudos revisionistas demonstram uma maior interpretação local da história mineira, priorizando as relações da sociedade mineira entre si, em contraponto a uma história tradicional marxista com menor foco regional, mostrando que a sociedade mineira se encontrava longe de estar estagnada, por exemplo. Utilizando-nos do prisma local, podemos compreender melhor as dinâmicas sociais de determinado contexto histórico, fugindo assim de estereótipos e, também, desconstruindo narrativas criadas que, na verdade, pouco fazem sentido com a localidade, dando ênfase então a uma pluralidade de estudos, fazendo surgir novos sujeitos que são excluídos e esquecido quando se prioriza grandes personagens. Portanto, a perspectiva local,“[...] procura também entender a maneira como movimentos ou transformações coletivos são possíveis, mas não a partir desses movimentos em si e da capacidade autorrealizadora que se lhes imputa, e sim da parte que cada ator toma neles. [...]”(REVEL, 2010, p. 440).
Após a contextualização do arraial e da batalha nele ocorrida, sustentando-se neste caráter local, buscou-se enfatizar uma diferença de visões históricas da Revolução Liberal de 1842, e da última batalha ocorrida no arraial luziense, mostrando as diferentes perspectivas da batalha, de como ela é estudada e concebida através de ângulos que priorizam uma análise macroestrutural, ou seja, sua relação direta com as tensões que vivia o Império brasileiro naquele momento, e os sentidos que esta batalha final, que pôs fim à revolta, possui para a história de Santa Luzia.
A historiografia, que prioriza uma análise local, evidencia temáticas regionais e uma pluralidade na sociedade. Difundida principalmente pela Escola dos Annales, a história local utiliza-se de uma variedade de fontes que foram possíveis através da interdisciplinaridade, que se refere prática de um campo do saber apropriar-se de metodologias ou aportes teóricos de outro campo de saber constituindo um diálogo, inaugurada pela escola histórica francesa, mostrando novos sujeitos e novos problemas. Vejamos:
Há muito a historiografia vem considerando que as realidades criadas pelas experiências da atividade humana não podem ser somente analisadas a partir de seus aspectos globalizantes, mas, também, dentro das suas particularidades e singularidades, que se manifestam principalmente e de forma riquíssima no nível local. Essa nova postura difundida de forma generalizada pela escola dos Annales, possibilitou a abertura de novas fronteiras interpretativas, ampliando o campo das fontes documentais, e estabelecendo novos horizontes para as investigações, entre os uais destacam-se a análise da realidade local, sem perder de vista, é claro, o conjunto da sociedade. (CARVALHO, 2007, p.).
A historiografia tradicional narra os eventos da Revolução Liberal de 1842 numa perspectiva macroestrutural, e destaca os grandes feitos de Caxias, apresentando as decisões tomadas pelo futuro Duque, e como ele reprimiu, a mando do Imperador Dom Pedro II, os focos rebeldes em São Paulo e Minas Gerais, demonstrando a representação dessa revolta para o Império, no âmbito político.
Os conflitos armados ocorridos, em 1842, nas províncias paulista e mineira, derivaram da insatisfação dos liberais com as tomadas de decisões do Imperador que, após subir ao trono com o Golpe da Maioridade, em 1840, e conduzir os liberais ao poder político, em 1841, dissolveu a câmara liberal e elegeu um novo ministério alavancando o poder ao Partido Conservador, após crises políticas e econômicas que o Brasil sofria naquele momento. Análises históricas oficiais narram os eventos desta revolta privilegiando grandes figuras como o Imperador Dom Pedro II, através de seus impactos diretos na política imperial, não dando espaço às transformações que as batalhas travadas entre as tropas liberais e conservadoras promoveram nas cidades em que elas ocorreram.
Os desdobramentos dessa reflexão estão em consonância com as representações que privilegiam a imagem de que o Brasil foi (e é) um país pacífico, onde os processos políticos e sociais aconteceram de forma controlada e sem grandes rupturas. Entretanto, essa perspectiva não foi unânime entre os eruditos brasileiros durante todo o tempo. Os eventos que aconteceram no período regencial dividiram a escrita, e consequentemente, a representação dos eventos pelas elites.
O período regencial foi visto como anárquico e anômalo e, portanto, prejudicial, por políticos conservadores como Justiniano José da Rocha (o Visconde do Uruguai), Pereira da Silva, Moreira de Azevedo e Joaquim Nabuco que acusavam o momento instável como prejudicial à formação e desenvolvimento da nação. Para os liberais como os irmãos Ottoni, Theophilo e Cristiano Benedito, além de Francisco de Salles Torres Homem e Tavares Bastos, foi consolidada uma imagem mais progressista do período, como um momento de inspiração e singular na História brasileira pela consagração das liberdades e pelo papel necessário dessas liberdades para o progresso nacional.
O historiador Lúcio José dos Santos, por exemplo, em sua conferência no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) no ano de 1942, fez uma exposição da batalha, buscando criar uma narrativa oficial do evento, centrada nos interesses do partido liberal e sua insatisfação com as parcelas conservadoras, narrando os interesses e vontades dos principais homens que organizaram a revolta de forma factual e privilegiando os embates militares entre os revoltosos e as tropas de Caxias. Além disso, segundo Gama (2020), o historiador emite juízos de valor à narrativa, devido à suas perspectivas cristãs, pautadas em valores de progresso.
Historiadores como Aluísio de Almeida, José Antônio Marinho e Martins de Andrade também trabalham a história da Revolução Liberal de 1842, sobrepondo os seus aspectos políticos e narrando como ocorreram as batalhas, sem fazer uma análise pormenorizada sobre como essa revolta influenciava a sociedade das cidades nela envolvidas, e privilegiando os grandes atores políticos como Teófilo Ottoni, entre outras lideranças.
Outra contribuição interessante é de Alexandre Mansur Barata, que, em uma Comunicação à Associação Nacional de História (ANPUH, 2011), destacou que a Revolução Liberal de 1842 possibilitou a identificação de formas de atuação e das estratégias utilizadas na conflituosa relação entre o Poder Central e as oligarquias, principalmente a mineira. Ele analisou o movimento de 1842 como um movimento de insatisfação dos liberais e da possibilidade de “pegar em armas” com a formação de uma sociedade secreta intitulada “Patriarcas Invisíveis”, formada por monarquistas que se afirmavam como cidadãos na defesa do direito de insurreição diante da opressão de um governo autoritário.
Defendiam a monarquia, mas se posicionavam contra os recuos propostos pelo Gabinete Palaciano que ameaçariam o progresso com os retrocessos ao Ato Adicional de 1834.Barata (2011) destaca que a expectativa é que a Revolta se transformasse em Guerra Civil unindo São Paulo e Minas contra as forças “regressistas” e explicita o caráter simbólico das lutas de ambos os lados, demarcando as identidades políticas em disputa.
Dessa forma, ampliou a reflexão para um espaço temporal mais duradouro (1834-1844), analisando o questionamento à política centralizadora, as disputas entre o poder central e o poder local e os arranjos e rearranjos das elites provinciais diante dos acontecimentos do período. Também interessante é a análise construída por Valéria Cristina Rodrigues (2006) em sua monografia, na qual, além de investigar as razões políticas e as bases do movimento e como se deu a batalha e suas influências na província mineira, também constrói um estudo acerca do termo Revolução que este evento histórico carrega, já que este movimento não visava romper bruscamente com a estrutural imperial. Há também estudos promovidos por historiadores militares sobre a revolução, como é o artigo de Daróz (2014) na Revista Militar.
O historiador constrói sua narrativa destacando os feitos dos militares envolvidos na batalha, de que forma esses influenciaram na consolidação do Império e como “as operações militares realizadas em São Paulo e Minas Gerais e, principalmente, a ação de comando de Caxias, foram ricas em ensinamentos”. (DARÓZ, 2014, 572).Periódicos também retratam os acontecimentos da revolução através de umanarrativa linear dos eventos ocorridos.
A revista “O Cruzeiro” do ano de 1954 traz um texto sobre a revolta, que, ao expor os principais acontecimentos, destacando as ações dos combatentes, como reuniões e encontro secretos dos revoltosos, narra as estratégias e ainda revela uma carta colocada como inédita, revelando os sentimentos de Caxias com relação as batalhas.
Com um estudo local com a intenção de demonstrar como a batalha final, em 1842, no arraial de Santa Luzia, agitou a sociedade do pacato arraial, o historiador luziense Gustavo Villa (2019) em seu livro “Horizonte de eventos da Batalha de Santa Luzia”, mostra como esta batalha final causou transtornos e transformou a vida dos habitantes luzienses.
Último local de resistência dos “luzias”, Santa Luzia tornou-se palco de uma batalha que envolveria a população que habitava as ruas principais. No estudo de Villa (2019), são mostrados os sentimentos das pessoas que presenciaram e participaram das lutas, como elas auxiliavam as tropas liberais e temiam as tropas de Caxias devido aos saques e à destruição promovidos por ele. Também são corrigidos alguns erros históricos, como o local final da batalha que, no imaginário, teria ocorrido no Muro de Pedras –local turístico preservado como patrimônio municipal –quando, na verdade, não foi.
Além disso, narrativas circulam na memória local até hoje sobre este evento, além de que há marcas da batalha em alguns casarões. Essa perspectiva localista nos dá uma dimensão de como um evento que influenciou diretamente a política imperial, foi vivido de uma maneira diferente pela população de Santa Luzia.
Nos outros trabalhos citados, é nítido o foco na vitória do exército de Caxias e como eles contiveram os focos rebeldes, porém os luzienses, como expôs Villa (2019), eram muito mais próximos dos liberais do que das tropas que “lutavam” pelo Império. Ou seja, uma luta política que resultou em uma vitória do Império, foi percebida pelos habitantes locais como uma derrota devido às consequências promovidas.
Fonte: Revista História em Curso, Belo Horizonte, Dez. 2022 –ISSN: 2178 -1044
Autores: Pedro Luiz Teixeira de Sena& Gabriella Nunes Claudio
Santa Luzia e as perspectivas da Revolução Liberal de 1842
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