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Santa Luzia e as perspectivas da Revolução Liberal de 1842

 

O   arraial   de   Santa   Luzia,   fundado   em   1692, aproximadamente,    se    inseriu    facilmente    nas principais  rotas  comerciais  da  Estrada  Real,  devido ao  seu  posicionamento  geográfico  estratégico.  Em pouco  tempo,  o  povoado  ganhou  importância  e visibilidade   na   região   nos   oitocentos,   tornou-se arraial e, em 1856, tornou-se uma vila independente, separando-se  de  Sabará  e  consolidando-se  como importante centro comercial. Neste mesmo período, ocorreu  um  dos  principais  movimentos  liberais  no Império, afetando províncias e arraiais, principalmente  no  sudeste  do  Brasil,  a  Revolução Liberal   de   1842.   Será   discutido   nesse   artigo   o contexto  social,  econômico  e  político  luziense  do século XIX e sua inserção na Revolução Liberal; que alterou  a  dinâmica  da  vida  na  vila  de  Santa  Luzia. Além de uma discussão historiográfica sobre como a Revolução  Liberal,  é  percebida  pelos  autores  de diferentes  vertentes  historiográficas,  demonstrando como  podemos  perceber  esse  movimento  sob  um olhar regional.

INTRODUÇÃO

Pertencente  a  Sabará  até  o  século  XIX,  Santa  Luzia  se  desenvolveu  como  importante centro comercial nas proximidades com o rio, que mais tarde foi denominado Rio das Velhas, devido à sua posição geográfica privilegiada, incorporada no que se convencionou chamar de Estrada  Real.  Subordinada  à  vila  de  Sabará,  que  se  destacava  no  período  por  sua  intensa atividade aurífera e por abrigar a Intendência e a Casa de Fundição da região, que são órgãos da  coroa,  responsáveis  por  regulamentar  a  exploração,  distribuição  e  circulação  dos  metais preciosos.  

Como  os  demais  arraiais  oitocentistas,  Santa  Luzia  era  composta  por  um  centro urbano rodeado por uma zona rural, onde havia  a predominância da população  cativa. Havia certa equidade entre a quantidade de homens e mulheres, como sinalizado por Corrêa(2005). 

A economia luziensese baseava na escravidão, no comércio e na indústria têxtil.O nome da cidade  mudou  ao  longo  do  tempo,  mas  a  memória  registrou  Santa  Luzia,  na  História,  como palco da Revolução Liberal de 1842. É entre as disputas políticas e econômicas que, em 1842,iniciam-se as batalhas relativas à Revolução Liberal, em Santa Luzia. Esse processo precisa ser entendido como parte de um projeto político maior, que envolvia outras províncias e regiões do Brasil que nasceu a partir da polarização  entre  Liberais  e  Conservadores,  intensificado  durante  a  passagem  do  Período Regencial para o Segundo Reinado.

Dessa  forma,  buscar-se-á  compreender  como  essas  batalhas  influenciaram  a  vida cotidiana  dos  luzienses,  seus  desdobramentos  e  influências  políticas,  sociais  e  na  própria história  da  cidade,  visto  que,  até  hoje,  relatos  das  batalhas  se  fazem  presentes  na  região,  por meio da oralidade, compreendendo assim, que a história local não está alheia a história nacional, haja visto dos movimentos de interferência entre ambas.

Também  nos  propusemos  a  realizar  uma  revisão  bibliográfica  acerca  das  narrativas produzidas  sobre  a  Batalha,  apresentando  as  diferentes  perspectivas  historiográficas  de  tal evento,  buscando  entendê-lo  sob  uma ótica local.  Para  isso,  utilizamos, principalmente,  os textos escritos por Villa (2019), e Corrêa(2005). 

Este artigo é fruto de pesquisas relacionadas ao projeto de pesquisa de dois graduandos voluntários  no  PROBIC  da  Pontifícia  Universidade  Católica  de  Minas  Gerais,  cujo  tema principal  é  a  análise  da  influência  da  baronesa  Maria  Alexandrina  na  sociedade  luziense oitocentista.

O PACATO VILAREJO LUZIENSE

Em  meados  do  século  XVII,  com  a  queda  na  exportação  do  açúcar  e  o  início  dos primeiros achados auríferos, o objetivo da coroa era estabelecer, no território brasileiro, uma colônia  de  exploração  e  não  de  povoamento.  

Portugal  via  nas  terras brasileiras,  levando  em consideração  o  contexto  mercantil  da  época,  a  oportunidade  de  explorar  metais  preciosos, principalmente. Dessa forma, como demonstrado por Assunção (2020), grande parte das vilas mineiras se formou a partir das atividades bandeirantes e é nesse contexto que os paulistas se instalaram na região do Rio das Velhas, próximo à Santa Luzia. O bandeirante Manoel de Borba Gato, em uma de suas expedições, fundou, por volta de 1692, o arraial de Santa Luzia, que, rapidamente, se inseriu nas principais rotas comerciais da Estrada  Real,  devido  ao  seu  posicionamento  geográfico  estratégico. 

Então,  entende-se  que  o sítio era favorável a esse assentamento, uma vez que“ o sítio de uma cidade pode ser entendido como  o  conjunto  de  elementos físicos  e  naturais  que  possibilitam  o  assentamento  humano  e posterior modificação de acordo com as necessidades da sociedade.” (BORSAGLI, CASTRO, 2019, p.136).

A posição geográfica luziense não foi aleatória, pois, além de fatores naturais, o arraial se formou próximo a zonas comerciais, favorecendo, então, seu desenvolvimento, tendo com isso uma “possibilidade de comunicação com outros assentamentos humanos” (BORSAGLI; CASTRO, 2019, p.136)  Com isso, Assunção (2020) pontua que:

Além  de  sua  posição,  Santa  Luzia  destacou-se  inicialmente  por  conta  de  um  meio físico favorável. O seu distanciamento em relação à Cordilheira do Espinhaço fez com que  a  várzea  do  rio  naquela  região  se  tornasse  maior,  como  apontado  por  Goulart (2009) e, com isso, mais propícia ao estabelecimento humano. Além disso, a cidade situa-se próxima a um ponto de descontinuidade das altas altitudes do Espinhaço, o que  facilitava  a  aproximação  com  outras  cidades  que  compunham  a  Estrada  Real (ASSUNÇÃO, 2020, p.31).

Tendo  isso  em  mente,  durante  o  ciclo  do  ouro,  Santa  Luzia  estabeleceu-se  como importante  centro  comercial,  oferecendo  recursos  aos  viajantes  que  seguiam  pelas  rotas  da Estrada Real, pois se localizava como ponto crucial na travessia Ouro Preto Diamantina, além de  possibilitar  fácil navegação  entre  o  Rio  das  Velhas  e  o  São  Francisco.  Dessa  forma,  a economia luziense estava mais voltada para o comércio e abastecimento interno, diferentemente de  outros  arraiais  do  século  XVIII,  que  se  dedicavam,  quase  exclusivamente,  à  mineração. 

Outro fator interessante, discutido por Assunção (2020), no que diz respeito a essa característica comercial e de subsistência de Santa Luzia, é que:

“[...] o período de extração do ouro foi capaz de gerar intensos fluxos migratórios para as Minas e estabeleceruma forte economia voltada para o mercado externo, segundo era a orientação de toda a colônia"[...](ASSUNÇÃO, 2020. p. 34 apudPRADO JÚNIOR, 1992).

Dessa  forma,  depreende-se  que  Santa  Luzia  gerava  excedentes  de  mercadorias  que faziam parte do fluxo do comércio geral da colônia,e também das exportações para a coroa, inserindo-se, com isso, em uma rede comercial mais ampla. Essa percepção da economia agropastoril, mesmo durante os primórdios e no auge do período aurífero, é reforçada pelo revisionismo histórico dos anos 1980 que, a partir de análises regionais, econômicas e demográficas, revisita temas do passado colonial e imperial. Autores como Laura de Mello e Souza (1983), e Júnia Furtado (1999) produziram estudos, a partir da perspectiva revisionista, demonstrando a pluralidade existente na região das Minas e afirmando a dinamização agropastoril, entre outros aspectos. Santa Luzia, assim como outras regiões das Minas, tinha uma produção que abastecia o mercado interno do povoado e de seu entorno. Ainda assim, o arraial luziense permanecia sob domínio da Vila de Sabará, que se configurava como uma das principais cidades mineiras, devido à intensa exploração aurífera nessa região, além de abrigar a Casa de Fundição e a Intendência, órgãos responsáveis por controlar a produção e circulação de metais preciosos nesse período. A ruptura entre Santa Luzia e Sabará, no séculoXIX, se deu, de acordo com Assunção (2020),  após  uma  série  de  conflitos  entre  as  elites  mineiras.  

Os  luzienses  reivindicavam  sua emancipação  usando  justificativas  como  a  dificuldade  do  acesso  à  Vila  de  Sabará  e, principalmente, devido a sua posição geográfica estratégica em relação às rotas comerciais. A emancipação  era  desejada,  pois  a  elite  queria  se  inserir  de  maneira  autônoma  nos  processos políticos. A primeira tentativa real de emancipação se deu em 1760, contudo a coroa portuguesa recusou  a  petição. Somente  em  1858  Santa  Luzia  conseguiu  se  emancipar  de  Sabará,  sob protestos e resistências, pois Sabará lucrava com as atividades comerciais luzienses. 

Como apontado por Assunção (2020):

“[...] conclui-se previamente que a formação de Santa  Luzia  como  cidade  se  dá,  nesse  momento,  exclusivamente  por  prestar  suporte  à infraestrutura  espacial  e  hidrográfica  necessárias  à  essa  economia,  tanto  em  termos  de  sítio geográfico como de posição.” (ASSUNÇÃO, 2020, p. 34)

Outrossim, a respeito da sociedade luziense nos séculos XVIII e XIX, pode-se dizer, de acordo  com  Corrêa  (2005),  que,  no  comércio,  predominavam  os  homens  livres  e  que  as mulheres,  livres  e  escravas,  ficavam  restritas  às  ocupações  na  indústria  têxtil  e  às  atividades domésticas. Assim como nos demais arraiais oitocentistas, Corrêa (2005) observa que havia um centro  comercial  urbano  rodeado  por  uma  zona  rural,  onde  predominava  a  população  cativa, Formada, em sua maioria, por homens. Vale ressaltar que toda a economia local se sustentava no escravismo. Sobrea análise da ocupação do distrito, a autora afirma:

A  análise  das  ocupações  dos habitantes  do  Distrito  parece  corroborar  a  hipótese  de uma  economia  dinâmica, voltada para  o  artesanato  e  o  abastecimento  interno. Encontramos  uma  grande  variedade  de  ocupações,  dentre  as  quais  vários  ofícios ligados ao artesanato (alfaiate, sapateiro, carapina, seleiro, valeiro, santeiro, para citar alguns)  e  uma  relativa  diversificação  profissional,  com  presença  de  eclesiásticos, vários  músicos,  quatro  boticários,  dois  cirurgiões,  dois  juízes  de  vintena,  e  até floristas.(CORRÊA, 2005, p. 33).

Ademais,  a  população  adulta  luziense  era  composta,  em  sua  maioria,  por  pessoas  em situação de escravidão, ocorria uma distribuição de sexo equilibrada, em comparação às pessoas em situação de liberdade (CORREA, 2005, p. 6). 

Até os 16 anos, havia certa equidade entre a porcentagem de homens e mulheres na sociedade, contudo, após essa faixa etária, havia uma predominância  feminina,  Corrêa  (2005)  explica  essa  ausência  masculina  a  partir  de  alguns fatores como um:

[...] possível movimento migratório dos homens para outros locais. Um outro motivo para  essa  escassez poderia  ser a  evasão durante  períodos de recrutamento militar, e havia  também  a  questão  do  nomadismo.  Outro  fator  para  a  ausência  masculina: homens possuíam terras fora do distrito ali residindo, deixando apenas as mulheres e seus filhos no arraial. (CORRÊA, 2005, p. 34-350)

A  análise  do  Censo  de  1872  confirma  a  hegemonia  feminina  na  vila,  não  só  entre escravos  e  livres,  mas  entre  a  população  em  geral:  eram  3.128  mulheres,  o  correspondente  a 51,6%. Os homens eram 2.943, ou seja, 48,4%. Também a análise sobre letramento e estado civil confirma as percepções demográficas comuns nas vilas mineiras. Havia mais solteiros do que casados (34,5% dos homens e 35% das mulheres eram solteiros, enquanto apenas 12% da população  era  constituída  por  casados).  Os  homens  que  sabiam  ler  superam  as  mulheres  em quase cinco vezes (6,5% dos homens de Santa Luzia sabiam ler e escrever contra apenas 1,4% das mulheres).



Finalizado  o  desenho  demográfico,  é  nosso  foco  aqui  entender  como  esses  dados impactam a realidade social, urbana, política e econômica que vai culminar na defesa liberal, marca da Revolução de 1842. A tendência liberal da Revolução e sua acolhida pela cidade se confirma quando compreendemos a conjuntura social e os interesses dos grupos econômicos e intelectuais  que  tinham  em  sua  base  os  homens  de  negócios.  Nessa  perspectiva,  os  aspectos demográficos, com destaque para a presença de escravizados ainda de forma significativa no final do XIX, indica a importância econômica central que vai nortear os discursos políticos em defesa  da  maior  autonomia  provincial  e  da  redução  de  restrições  comerciais,  facilitando  as exportações intraprovinciais e externas.

A BATALHA, OS “LUZIAS” E SUA INFLUÊNCIA NA SOCIEDADE LUZIENSE

O movimento liberal de 1842 deve ser entendido como parte de um processo político maior, tendo  se  iniciado  em  São  Paulo  e  se  expandido  até  Minas  Gerais  e que  se  deu  com  a polarização  entre  as  forças  Liberais  e  Conservadoras  durante  a  transição  entre  o  Período Regencial e o Segundo Reinado. Nesse período, nota-se uma disputa política entre esses dois principais grupos, fazendo eclodir motins e revoltas em diversas províncias e vilarejos. Ademais, Villa (2019) analisa o envolvimento dos sabarenses com a política nacional a partir  de  1822,  anos  antes  da  revolução  de  1842,  quando  se  tornou  mais  perceptível  a instabilidade do contexto político, demonstrando que os sabarenses passaram a buscar meios de  se  integrarem  aos  grupos  políticos  ativos  e  que,  possivelmente,  atuariam  nos  próximos governos. É nesse cenário de instabilidades e de busca por participação política que a Revolução Liberal  de  1842  deve  ser  compreendida  como  um  movimento  que  interliga  acontecimentos numa escala macro e micro. Os liberais orquestraram e aplicaram o Golpe da Maioridade, que colocou D. Pedro II no  poder  com  apenas  14  anos.  Contudo,  após  se  estabelecer  como  Imperador,  D.  Pedro  II assumiu uma postura política que se aproximava das demandas dos conservadores, deixando os liberais completamente insatisfeitos. A  partir  disso,  as  elites  paulistas,  segundo  Villa  (2019),  nomearam Rafael  Tobias  de Aguiar  para  a  Presidência  Interina  da  Província.  Os  combates  começaram  em  Sorocaba,  e terminaram em 20 de junho com a vitória dos Legalistas sob o comando do Barão de Caxias, Luís  Alves  de  Lima  e  Silva.  A  província  mineira  também  nomeou, em  Barbacena,  José Feliciano Pinto Coelho da Cunha como Presidente Interino. Os embates começaram na Comarca do Rio das Mortes com significativas vitórias das tropas liberais, conhecidos como luzias, contudo, o palco da revolução foi se transferindo para o Rio das Velhas (VILLA, 2019, p. 6)
4. Os Liberais ocuparam Caeté e Sabará e estabeleceram Câmaras Municipais Intrusas nas duas regiões. Após pacificar a situação em São Paulo, o Barão de  Caxias  partiu  em  direção  à  província  mineira  com o  mesmo  objetivo,  reprimir  as  tropas liberais, chegando em Ouro Preto no dia 6 de agosto. As tropas liberais, de acordo com Villa (2019), se transferiram para Santa Luzia em 14 de agosto, se preparando estrategicamente para a última batalha contra as tropas do Barão de Caxias, que no dia 20 de agosto de 1842 se instalou nas entradas do arraial luziense. Vejamos: 

Caxias dividiu sua força militar em três colunas: uma comandada pelo Coronel José Joaquim de Lima e Silva seguiria pela estrada do arraial da Lapa; outra, sob o comando 

4 De acordo com BARATA (2011), a insatisfação dos liberais com a atuação do Gabinete palaciano de 1841 vai gerar um desgaste político e uma demarcação política importante entre os dois grupos (liberais e conservadores). Iniciada em São Paulo, e em apoio aos paulistas, os liberais proclamaram em Barbacena, em 10 de julho de 1842, o tenente coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, o futuro Barão de Cocais, como presidente da província, confrontando  Bernardo  Jacinto  Veiga  que  havia  sido  nomeado  pelo  imperador  e  empossado  em  Ouro  Preto.  A ascensão de Coelho da Cunha veio acompanhada pela criação do Corpo de Guardas Municipais, em substituição à Guarda Nacional e a determinação da desobediência às autoridades criadas pelas leis n.234/1841 e n.261/1841, que  reestabeleceram  o  Conselho  de  Estado  e  Reformaram  o  Código  de  Processo  Criminal  respectivamente. Assumiram  São  João  Del  Rei  e  garantiram  a  adesão  de  muitos  municípios  mineiros  (Pomba,  Queluz,  Airuoca, Lavras, São João Del Rei, São José Del Rei, Baependi, Santa Bárbara, Santa Quitéria e Curvelo). Mesmo com a derrota em São Paulo e o isolamento, deram prosseguimento à revolta e, conciliando vitórias e derrotas até serem derrotado em 20 de agosto, em Santa Luzia.

do Coronel  Francisco de  Assis Ataíde, em direção ao Rio das Velhas,  enquanto ele próprio avançaria contra a posição rebelde através da estrada de Sabará [...] Na manhã do  dia  20  de  agosto,  Caxias  investiu  sobre  os  revoltosos  empregando  a  tática  do envolvimento  [...]  As  baixas  das  forças  imperiais  foram  mínimas,  totalizando  72 mortos  e  feridos;  enquanto  os  rebeldes  perderam  60  mortos,  100  feridos  e  300 prisioneiros.  Os  vencidos,  entre  os  quais  se  encontravam  Teófilo  Ottoni  e  Camilo Maria Ferreira Armond (conde de Prados) foram enviados para a prisão em Ouro Preto e Barbacena.(DARÓZ, 2014, p. 571)Depois dos processos de julgamento foi concedido aos revoltosos a anistia através do decreto n° 342 (apudVILLA, 2019, p.78), expedido em 14 de março de 1844, pelo Imperador D. Pedro II.

Art. Único. Ficam anistiados todos os crimes políticos cometidos em o ano de 1842 nas Províncias de São Paulo e Minas Gerais, e em perpétuo silêncio os processos que por motivos deles tenham instaurados. Manuel Alves Branco conselheiro de Estado, ministro e secretário de Estado encarregado interinamente dos Negócios da Justiça, o tenha assim entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 14 de março de 1844, vigésimo terceiro da Independência e do Império. (VILLA, 2019, p. 79)

Mesmo  após  178  anos,  a  batalha  entre  liberais  e  conservadores  ainda  faz  parte  do imaginário  luziense,  principalmente  por  meio  da  história  oral.  As  famílias  mais  tradicionais preservam   as   memórias   e   as   narrativas   acerca   desses   acontecimentos,   que   alteraram significativamente a dinâmica da sociedade no período. Villa (2019), em seu livro “Horizonte de eventos da batalha de Santa Luzia”, demonstra que a violência não ficou restrita aos campos de  batalha,  mas  se  estendeu  por  todos  os  âmbitos  da  vila,  alterando  até  mesmo  as  relações econômicas, pois foi necessária uma logística para sustentar as tropas envolvidas. Cabe  ressaltar,  como  demonstrado  pelo  autor,  que  a  maior  parte  da  população  estava alheia aos acontecimentos políticos que motivaram tais conflitos, devido aos baixos índices de educação,  como  podemos  notar  no  gráfico  1 –ver  seção  anterior -a  grande  maioria  da população era analfabeta, e também devido à dificuldade para a circulação de notícias. Neste contexto  histórico,  o  jogo  político  estava  reservado  às  elites  locais,  que  eram compostas pelos protagonistas do sistema,-que o eram seja por deterem poderio econômico ou pela força das tradições e títulos-, perspectiva que perdura até as primeiras décadas da república, como apontado pelo historiador José Murilo de Carvalho (2019) em “Os Bestializados_ O Rio de Janeiro e a república que não foi”, que, apesar de ter como tempo histórico o final do século XIX, nos ajuda a entender como foi formada uma população civil que era inativa e excluída do processo político.

Contudo, nota-se um esforço de ambos os lados, liberais e conservadores, para depreciar a imagem do oponente perante a sociedade (VILLA, 2019). Apesar desses fatores, a população assistia de perto aos acontecimentos da batalha e vivenciava diariamente o medo e a incerteza que surgem em momentos de conflitos. Villa (2019) traz em seu livro fragmentos dos relatos do cientista dinamarquês Peter Lund (1982), morador de Lagoa Santa, demonstrando o reflexo dos conflitos no dia a dia da sociedade mineira.

O paraíso terrestre (...) tornou-se palco de cenas que me encheram de repulsa e pavor. (...) ninguém em casa veio a ferir-se, apesar das balas que assobiavam perto dos nossos ouvidos (...) neste momento, quando escrevo isso, reina um silêncio sepulcral em torno de mim, todas as casas fechadas, as ruas vazias, nenhuma viv’ alma é vista. Alguns corpos ainda estão espalhados aqui e ali; os abutres, que nos dias de tumulto anteriores tinham  desaparecido,  já  se  deixam  ver,  mas  eu  antecipo  no  trabalho  principal  de recolher e enterrar os cadáveres. O Sol de Lagoa Santa se pôs pra mim.(LUND, 1842, apudVILLA, 2019, p.9).

Além  disso,  o  autor  também  traz  outras  histórias  acerca  de  eventos  ocorridos  nesse período de confrontos, como saques e roubos às propriedades oponentes e assassinatos de civis. Uma  das  fontes  primárias  consultadas  pelo  autor,  e  que  chama  atenção  pela  absurdez,  é  que atribuíram como causa da morte de Dona Francisca Marcianna de Assis e Castro, o “susto da revolução” VILLA, 2019, p. 10, grifo do autor).

Diante  do  exposto,  percebe-se  que  a  população  esteve  exposta  às  agruras  do  conflito entre liberais e conservadores pelo domínio político do Império. A última batalha da Revolução Liberal, ocorrida em Santa Luzia, fazia parte de um projeto muito maior, que envolvia outras regiões  do  Brasil,  como  a  província  de  São  Paulo e  o  império  como  um  todo.  Motivada  por insatisfações com as políticas palacianas e conservadoras, como registrado por Barroso (1954): “[...] o que os liberais pleiteavam na verdade era pura e simplesmente o poder político [...] sobre o Império” (BARROSO 1954, p.46).

A REVOLUÇÃO LIBERAL E SUAS VERTENTES HISTORIOGRÁFICAS

Ao  nos  debruçarmos  sobre  a  historiografia  mineira,  encontramos  mitos  criados  e generalizações  que  forjam  uma  imagem  de  uma  estagnação  sociocultural  e  econômica  da província  mineira,  principalmente  durante  o  séculoXIX.  Eduardo  Paiva  (2009),  em  seus estudos  na  década  de  80,  nos  mostra  uma  vertente  que  foge  desse  tradicionalismo,  sendo precursor  de  estudos  revisionistas  que  trazem  uma  Minas  Gerais  oitocentista  dinâmica,  com inúmeras relações entre si e que apresenta peculiaridades regionais.

Os estudos revisionistas demonstram uma maior interpretação local da história mineira, priorizando as relações da sociedade mineira entre si, em contraponto a uma história tradicional marxista com menor foco regional, mostrando que a sociedade mineira se encontrava longe de estar estagnada, por exemplo. Utilizando-nos do prisma local, podemos compreender melhor as dinâmicas sociais de determinado  contexto  histórico,  fugindo  assim  de  estereótipos  e,  também,  desconstruindo narrativas criadas que, na verdade, pouco fazem sentido com a localidade, dando ênfase então a  uma  pluralidade  de  estudos,  fazendo  surgir  novos  sujeitos  que  são  excluídos  e  esquecido quando  se  prioriza  grandes  personagens.  Portanto,  a  perspectiva  local,“[...]  procura  também entender  a  maneira  como  movimentos  ou  transformações  coletivos  são  possíveis,  mas  não  a partir desses movimentos em si e da capacidade autorrealizadora que se lhes imputa, e sim da parte que cada ator toma neles. [...]”(REVEL, 2010, p. 440).

Após  a  contextualização  do  arraial  e  da  batalha  nele  ocorrida,  sustentando-se  neste caráter local, buscou-se enfatizar uma diferença de visões históricas da Revolução Liberal de 1842, e da última batalha ocorrida no arraial luziense, mostrando as diferentes perspectivas da batalha,  de  como  ela  é  estudada  e  concebida  através  de  ângulos  que  priorizam  uma  análise macroestrutural,  ou  seja,  sua  relação  direta  com  as  tensões  que  vivia  o  Império  brasileiro naquele  momento,  e  os  sentidos  que  esta  batalha  final,  que  pôs  fim  à  revolta,  possui  para  a história de Santa Luzia.

A  historiografia,  que  prioriza  uma  análise  local,  evidencia  temáticas  regionais  e  uma pluralidade na sociedade. Difundida principalmente pela Escola dos Annales, a história local utiliza-se de uma variedade de fontes que foram possíveis através da interdisciplinaridade, que se  refere  prática  de  um  campo  do  saber  apropriar-se  de  metodologias  ou  aportes  teóricos  de outro  campo  de  saber  constituindo  um  diálogo,  inaugurada  pela  escola  histórica  francesa, mostrando novos sujeitos e novos problemas. Vejamos:

Há   muito   a   historiografia   vem   considerando   que   as   realidades   criadas   pelas experiências da atividade humana não podem ser somente analisadas a partir de seus aspectos    globalizantes,    mas,    também,    dentro das    suas    particularidades    e singularidades,  que  se  manifestam  principalmente  e  de  forma  riquíssima  no  nível local.  Essa  nova  postura  difundida  de  forma  generalizada  pela  escola  dos  Annales, possibilitou  a  abertura  de  novas  fronteiras  interpretativas,  ampliando  o  campo  das fontes documentais, e estabelecendo novos horizontes para as investigações, entre os uais destacam-se a análise da realidade local, sem perder de vista, é claro, o conjunto da sociedade. (CARVALHO, 2007, p.).

A historiografia  tradicional  narra  os  eventos  da  Revolução  Liberal  de  1842  numa perspectiva  macroestrutural, e destaca  os  grandes  feitos  de  Caxias,  apresentando  as  decisões tomadas pelo futuro Duque, e como ele reprimiu, a mando do Imperador Dom Pedro II, os focos rebeldes  em  São  Paulo  e  Minas  Gerais, demonstrando  a  representação  dessa revolta  para  o Império, no âmbito político. 

Os conflitos armados ocorridos, em 1842, nas províncias paulista e mineira, derivaram da insatisfação dos liberais com as tomadas de decisões do Imperador que, após subir ao trono com  o  Golpe  da  Maioridade,  em  1840,  e  conduzir  os  liberais  ao  poder  político,  em  1841, dissolveu  a  câmara  liberal  e  elegeu  um  novo  ministério  alavancando  o  poder  ao  Partido Conservador, após crises políticas e econômicas que o Brasil sofria naquele momento. Análises  históricas  oficiais  narram  os  eventos  desta  revolta  privilegiando  grandes figuras como o Imperador Dom Pedro II, através de seus impactos diretos na política imperial, não  dando  espaço  às  transformações  que  as  batalhas  travadas  entre  as  tropas  liberais  e conservadoras promoveram nas cidades em que elas ocorreram. 

Os  desdobramentos  dessa  reflexão  estão  em  consonância  com  as  representações  que privilegiam a imagem de que o Brasil foi (e é) um país pacífico, onde os processos políticos e sociais aconteceram de forma controlada e sem grandes rupturas. Entretanto, essa perspectiva não foi unânime entre os eruditos brasileiros durante todo o tempo. Os eventos que aconteceram no período regencial dividiram a escrita, e consequentemente, a representação dos eventos pelas elites.  

O  período  regencial  foi  visto  como  anárquico  e  anômalo  e,  portanto,  prejudicial,  por políticos  conservadores  como  Justiniano  José  da  Rocha  (o  Visconde  do Uruguai),  Pereira  da Silva,  Moreira  de  Azevedo  e  Joaquim  Nabuco  que  acusavam  o  momento  instável  como prejudicial  à  formação  e  desenvolvimento  da  nação.  Para  os  liberais  como  os  irmãos  Ottoni, Theophilo e Cristiano Benedito, além de Francisco de Salles Torres Homem e Tavares Bastos, foi consolidada uma imagem mais progressista do período, como um momento de inspiração e singular na História brasileira pela consagração das liberdades e pelo papel necessário dessas liberdades para o progresso nacional. 

O  historiador  Lúcio  José  dos  Santos,  por  exemplo,  em  sua  conferência  no  Instituto Histórico  Geográfico  Brasileiro  (IHGB)  no  ano  de  1942,  fez  uma  exposição  da  batalha, buscando criar uma narrativa oficial do evento, centrada nos interesses do partido liberal e sua insatisfação  com  as  parcelas  conservadoras,  narrando  os  interesses  e  vontades  dos  principais homens que organizaram a revolta de forma factual e privilegiando os embates militares entre os  revoltosos  e  as  tropas  de  Caxias.  Além  disso,  segundo Gama  (2020), o  historiador  emite juízos de valor à narrativa, devido à suas perspectivas cristãs, pautadas em valores de progresso.

Historiadores como Aluísio de Almeida, José Antônio Marinho e Martins de Andrade também  trabalham  a  história  da  Revolução  Liberal  de  1842,  sobrepondo  os  seus  aspectos políticos e narrando como ocorreram as batalhas, sem fazer uma análise pormenorizada sobre como  essa  revolta  influenciava  a  sociedade  das  cidades  nela  envolvidas,  e  privilegiando  os grandes atores políticos como Teófilo Ottoni, entre outras lideranças.

Outra   contribuição   interessante   é   de   Alexandre   Mansur   Barata,   que,   em   uma Comunicação à Associação Nacional de História (ANPUH, 2011), destacou que a Revolução Liberal de 1842 possibilitou a identificação de formas de atuação e das estratégias utilizadas na conflituosa  relação  entre  o  Poder  Central  e  as  oligarquias,  principalmente  a  mineira.  Ele analisou  o  movimento  de  1842  como  um  movimento  de  insatisfação  dos  liberais  e  da possibilidade  de  “pegar  em  armas”  com  a  formação  de  uma  sociedade  secreta  intitulada “Patriarcas Invisíveis”, formada por monarquistas que se afirmavam como cidadãos na defesa do direito de insurreição diante da opressão de um governo autoritário. 

Defendiam a monarquia, mas  se  posicionavam  contra  os  recuos  propostos  pelo  Gabinete  Palaciano  que  ameaçariam  o progresso com os retrocessos ao Ato Adicional de 1834.Barata  (2011)  destaca  que  a  expectativa  é  que  a  Revolta  se  transformasse  em  Guerra Civil unindo São Paulo e Minas contra as forças “regressistas” e explicita o caráter simbólico das  lutas  de  ambos  os  lados,  demarcando  as  identidades  políticas  em  disputa.  

Dessa  forma, ampliou  a  reflexão  para  um  espaço  temporal  mais  duradouro  (1834-1844),  analisando  o questionamento à política centralizadora, as disputas entre o poder central e o poder local e os arranjos e rearranjos das elites provinciais diante dos acontecimentos do período. Também interessante é a análise construída por Valéria Cristina Rodrigues (2006) em sua monografia, na qual, além de investigar as razões políticas e as bases do movimento e como se deu a batalha e suas influências na província mineira, também constrói um estudo acerca do termo Revolução que este evento histórico carrega, já que este movimento não visava romper bruscamente com a estrutural imperial. Há também estudos promovidos por historiadores militares sobre a revolução, como é o artigo de Daróz (2014) na Revista Militar. 

O historiador constrói sua narrativa destacando os feitos dos militares envolvidos na batalha, de que forma esses influenciaram na consolidação do  Império  e  como  “as  operações  militares  realizadas  em  São  Paulo  e  Minas  Gerais  e, principalmente, a ação de comando de Caxias, foram ricas em ensinamentos”. (DARÓZ, 2014, 572).Periódicos também retratam os acontecimentos da revolução através de umanarrativa linear  dos  eventos  ocorridos.  

A  revista “O  Cruzeiro” do  ano  de  1954  traz  um  texto  sobre  a revolta,  que,  ao  expor  os  principais  acontecimentos,  destacando  as  ações  dos  combatentes, como reuniões e encontro secretos dos revoltosos, narra as estratégias e ainda revela uma carta colocada como inédita, revelando os sentimentos de Caxias com relação as batalhas.

Com um estudo local com a intenção de demonstrar como a batalha final, em 1842, no arraial de Santa Luzia, agitou a sociedade do pacato arraial, o historiador luziense Gustavo Villa (2019)  em  seu  livro “Horizonte  de  eventos  da  Batalha  de  Santa  Luzia”,  mostra  como  esta batalha final causou transtornos e transformou a vida dos habitantes luzienses.

Último local de resistência dos “luzias”, Santa Luzia tornou-se palco de  uma batalha que  envolveria  a  população  que  habitava  as  ruas  principais.  No  estudo  de  Villa  (2019),  são mostrados  os  sentimentos  das  pessoas  que  presenciaram  e  participaram  das  lutas,  como  elas auxiliavam  as  tropas  liberais  e  temiam as  tropas  de  Caxias  devido  aos  saques  e  à  destruição promovidos  por  ele.  Também  são  corrigidos  alguns  erros  históricos,  como  o  local  final  da batalha que, no imaginário, teria ocorrido no Muro de Pedras –local turístico preservado como patrimônio  municipal –quando,  na  verdade,  não  foi.  

Além  disso,  narrativas  circulam  na memória local até hoje sobre este evento, além de que há marcas da batalha em alguns casarões. Essa  perspectiva  localista  nos  dá  uma  dimensão  de  como  um  evento  que  influenciou diretamente a política imperial, foi vivido de uma maneira diferente pela população de Santa Luzia. 

Nos outros trabalhos citados, é nítido o foco na vitória do exército de Caxias e como eles contiveram os focos rebeldes, porém os luzienses, como expôs Villa (2019), eram muito mais próximos dos liberais do que das tropas que “lutavam” pelo Império. Ou seja, uma luta política que resultou em uma vitória do Império, foi percebida pelos habitantes locais como uma derrota devido às consequências promovidas.


Fonte: Revista História em Curso, Belo Horizonte, Dez. 2022 –ISSN: 2178 -1044 

Autores: Pedro Luiz Teixeira de Sena& Gabriella Nunes Claudio 

Santa Luzia e as perspectivas da Revolução Liberal de 1842

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