Navigation Menu

Cemitério dos Escravos em Santa Luzia


O bem cultural denominado Cemitério dos Escravos, localiza-se a 7km do Centro Histórico de Santa Luzia, na rua Damásio José Diniz e Silva, área da antiga Sesmaria das Bicas.

A paisagem onde o bem está inserido é predominantemente rural, com poucas edificações dispersas nos terrenos, onde se desenvolvem atividades agrícolas ou de criação de animais. Predomina a vegetação rasteira, destinada à pastagem de animais, com alguns trechos de mata preservada. O Cemitério dos Escravos é contornado por muro de pedras, em junta seca e formato quadrangular com aproximadamente 0,90 metros de largura e 1,10 metros de altura. O acesso ao ele se faz através de um pequeno portão em madeira coberto por telhado de duas águas. Internamente, não há lápides ou túmulos, como nos cemitérios convencionais, mas apenas um cruzeiro em madeira e um caminho cimentado que se estende do portão a esta cruz.

Dada sua relevância histórica e cultural, o Cemitério dos Escravos foi tombado pelo município de Santa Luzia por meio do Decreto nº 2.132 de 03 de novembro de 2008. O dossiê de tombamento do bem cultural foi apresentado ao IEPHA nos exercícios 2010/2011 do ICMS Cultural, tendo sido elaborado predominantemente a partir de fontes bibliográficas, produzidas por autores locais, descendentes dos antigos proprietários das terras, e de fontes orais. Não foram apresentados registros documentais que comprovassem a ocorrência de sepultamentos no local.

Além disso, a divergência numérica em relação aos sepultados era imensa. Segundo o dossiê de tombamento do Cemitério dos Escravos teriam ocorrido cerca de 300 sepultamentos no local. Fontes bibliográficas, também fundamentadas em informações orais, trazem um número bem mais modesto, afirmando que mais de 30 escravos ou filhos de escravos haviam sido sepultados no referido cemitério1.

Neste sentido, a história do Cemitério dos Escravos permanecia na obscuridade, silenciada e ainda bastante desconhecida. Embora reconhecido como um espaço simbólico e místico, pairavam dúvidas quanto à existência efetiva de sepultamentos no local, surgindo daí a necessidade de se promover uma pesquisa documental, com o objetivo dar voz àqueles a quem o cemitério se destinava, buscando preencher eventuais lacunas e omissões do passado.

Partindo das fontes bibliográficas utilizadas na elaboração do dossiê de tombamento do Cemitério dos Escravos, foi possível construir a cadeia dominial da antiga Sesmaria das Bicas e, a partir destes dados, dar início à investigação documental.

De acordo com Inês Gonçalves Diniz2, o primeiro Capitão-Mor da antiga Sesmaria das Bicas foi o português Domingos Pinto Carneiro. Verificou-se, através do sítio eletrônico do Arquivo Público Mineiro3, a existência de documentos históricos da segunda metade do século XVIII que se referem a este português.

O segundo Capitão-Mor foi Antônio Martins Gil, que, em 1745, teria ajudado o Sargento-Mor Pacheco Ribeiro4 com a doação de ouro para a construção da Igreja Matriz de Santa Luzia.


Antônio Martins Gil era tio de Manoel Gonçalves Giraldes, a quem doou a Fazenda do Taquaraçu de Baixo. Manoel Gonçalves casou-se com Anna Senhorinha Margarida de São José Ribeiro dos Guimarães Telles e Fayões, filha do Sargento-Mor Pacheco Ribeiro.

O Tenente Antônio Gonçalves Giraldes, filho de Manoel Gonçalves e Anna Senhorinha, casou-se com Maria Cândida de São Camilo Moreira, filha de José Nunes Moreira e Vitorianna Maria de São Camilo, proprietários da Fazenda das Bicas.

Após a morte de José Nunes Moreira, seu filho, João Câncio Nunes Moreira, casado com Rita Marcelina de Macedo Moreira, continuou na Fazenda das Bicas. Uma das filhas do casal, Firmina Maria dos Prazeres Moreira Diniz, casada com Dâmaso José Diniz e Silva5, passou, por herança, a residir na propriedade que, posteriormente, acabou se fragmentando entre diversos herdeiros.

As pesquisas realizadas nos Registros Paroquiais da Igreja Católica, mais especificamente nos registros de óbitos de Santa Luzia, nos períodos de outubro de 1810 – maio de 1829 e agosto de 1824 – novembro de 1873, evidenciaram a ocorrência de sepultamentos, entre os anos de 1810 e 1855, no Cemitério de José Nunes Moreira que, mais tarde, aparece como Cemitério da Fazenda de João Câncio Nunes Moreira. Todos os sepultamentos levantados nesta propriedade eram referentes a escravos, pretos, crioulos e forros.

Local de sepultamentoDataSepultados
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira01 de maio de 1810Paulo Angola, escravo do Capitão José Nunes Moreira
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira15 de novembro de 1813Roque Angola, escravo de Antônia Felícia, em Pinhões
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira10 de dezembro de 1810Gonçalo […], preto forro, morador de Pinhões
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira25 de dezembro de 1810Luzia, crioula forra, mulher de Nasario crioulo, morador no Pissarão
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira06 de fevereiro de 1813José Mina, falecido em Pinhões, escravo de Silvestre Carvalho
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira22 de abril de 1825[ilegível] Carneiro, crioulo forro, pobre
Cemitério do Capitão José Nunes Moreira25 de agosto de 1842Um crioulo, de quatorze anos, escravo do Capitão José da Rocha de […]
Cemitério da Fazenda do Tenente Coronel João Câncio Nunes Moreira13 de novembro de 1854Manoel Teixeira, marido de Bibiana Francisca, crioula, moradores no Pissarão
Cemitério da Fazenda do Tenente Coronel João Câncio Nunes Moreira17 de fevereiro de 1855Martinho, filho legítimo de João Angola e Eva crioula, escravos do Tenente Antônio Gonçalves Giraldes
Cemitério da Fazenda do Tenente Coronel João Câncio Nunes Moreira27 de outubro de 1855Antônia Gonçalves, casada com Manoel da Cruz Maciel, crioulos, morador no Piçarrão


A documentação histórica deixa claro que o cemitério da antiga Fazenda das Bicas era destinado a uma categoria social específica e anônima, considerada inferior numa sociedade marcada pela rigidez hierárquica. A existência do espaço cemiterial dedicado exclusivamente a negros é indicativa de uma sociedade que se pretende manter absolutamente apartada do segmento escravista, até depois da morte.

Corrobora esta situação o registro de óbito de Vitorianna Maria de São Camilo, transcrito na obra de Inês Gonçalves, que serviu de base para elaboração do dossiê de tombamento do Cemitério dos Escravos. Esposa de José Nunes Moreira, proprietário da Fazenda das Bicas, Vitorianna Maria foi sepultada, aos 2 de março de 1819, dentro da Igreja de Macaúbas. Sabe-se que os indivíduos de condição social mais elevada eram sepultados no espaço interno dos templos católicos, sendo a proximidade da sepultura ao altar-mor, uma evidência de prestígio. Portanto, pode-se inferir que o Cemitério da Fazenda das Bicas não atendia aos seus proprietários, podendo ser considerado um espaço de segregação, representativo das tensões e conflitos que permeavam as relações sociais no período colonial.

Não se poder negar, no entanto, que a existência deste cemitério na Fazenda das Bicas pode também ser indicativa de uma certa preocupação que os proprietários conferiam ao sepultamento de seus escravos. Tratando da atuação da Intendência Geral de Polícia no Rio de Janeiro do século XIX, Villalta e Libby destacam o abandono com que a saúde e o enterro dos cativos era tratado pelos senhores. As principais evidências deste tratamento era a quantidade de corpos de escravos atirados pelas ruas da cidade e o precário estado de conservação dos cemitérios a eles destinados7. Também abordando o contexto urbano do Rio de Janeiro, Rodrigues e Bravo mencionam a existência de relatos sobre o abandono de cadáveres de escravos nas portas de igrejas para que fossem sepultados “pelo amor de Deus”8. Acredita-se que na Fazenda das Bicas a preocupação com o sepultamento dos cativos tenha sido, sobretudo, de ordem religiosa, uma vez que se verificou nos assentos de óbitos pesquisados a informação de que os defuntos foram paroquialmente encomendados.

Interessante notar que constam nos registros de óbitos referências a locais onde residiam os sepultados no Cemitério da Fazenda das Bicas. Um local denominado “Pissarão” ou “Piçarrão” aparece em três dos registros encontrados. Infelizmente, ainda não foi possível obter dados ou informações sobre esta localidade. Outra menção ao local de residência dos sepultados refere-se à localidade de Pinhões, que aparece em três registros. De acordo com Álvaro Diniz, em meados do século XIX, os proprietários da Sesmaria das Bicas, começaram a fixar escravos nas divisas de suas terras com as de Macaúbas, com o objetivo de promover a defesa da propriedade contra eventuais invasões. Esta teria sido a origem do povoado de Pinhões, que foi recentemente mapeado pelo CEDEFES 9 como possível comunidade quilombola. Como o antigo território do povoado de Pinhões se localizava entre a Sesmaria das Bicas e a do Mosteiro de Macaúbas, a origem da comunidade estaria diretamente ligada aos escravos e trabalhadores destas propriedades.

A documentação pesquisada sobre os sepultamentos nas terras dos Nunes Moreira possibilitou a conexão com outros bens culturais tombados pelo município de Santa Luzia, como o conjunto formado pelo Muro de Pedras e pelo Monumento a Duque de Caxias, que também não contam com mecanismos eficientes de gestão. A batalha final da Revolução Liberal de 184210, entre as tropas legalistas lideradas por Caxias e as tropas liberais comandadas por Teófilo Otoni foi travada em solo luziense. A cada dia 20 de agosto acontece uma cerimônia, registrada como bem imaterial do município, em memória deste acontecimento. Nos registros de óbitos relativos ao ano de 1842 podem ser encontrados diversos sepultamentos relacionados ao conflito, como “corpos de pessoas do Exército da Legalidade”, sepultados na Igreja Matriz de Santa Luzia.




A Revolução Liberal de 1842 repercutiu nas terras da Fazenda das Bicas e nos escravos da propriedade. Em sua obra, Inês Gonçalves Diniz narra um episódio bastante inusitado associado ao conflito: o batalhão de Caxias avançava pelas terras da Fazenda das Bicas e, como Rita Marcelina de Macedo Moreira, esposa de João Câncio Nunes Moreira, estava grávida, o casal teria deixado a fazenda antes da chegada das tropas. Um escravo chamado Thomaz, que teria ficado responsável pela guarda da casa-sede, teria retirado as tábuas do assoalho de um cômodo da parte inferior do antigo sobrado, tendo ali colocado toda prataria da família, cobrindo todo o piso com feijão, disposto como se fosse para secar. Quando os proprietários retornaram, o escravo Thomaz teria sido alforriado.

No que diz respeito especificamente ao Cemitério dos Escravos, consta dos assentos de óbitos pesquisados que, aos 25 de agosto de 1842, foi sepultado no Cemitério do Capitão José Nunes Moreira um crioulo, de quatorze anos, escravo do Capitão José da Rocha, “que faleceu baleado por ocasião do tumulto da guerra”.

Sendo assim, são muitas as possibilidades de pesquisa que o Cemitério dos Escravos pode suscitar. Além da pesquisa bibliográfica e documental que precisa ser aprofundada, a história oral pode se tornar um importante instrumento de pesquisa, promovendo o envolvimento das comunidades do entorno na proteção do bem cultural e incorporando à história do Cemitério leituras alternativas do passado. O Cemitério dos Escravos pode ainda ser considerado como um relevante sítio arqueológico, associado à história da escravidão nas Minas Gerais. A pesquisa arqueológica torna-se fundamental na área, na medida em pode trazer à tona informações que não aparecem na documentação oficial.

Não restam dúvidas de que o tombamento do antigo cemitério rural significou um passo importante na proteção do bem cultural, que teve sua relevância histórica e cultural oficialmente reconhecida pelo município de Santa Luzia. No entanto, o tombamento, por si só, não assegurou a efetiva proteção do bem cultural que não conta com instrumentos eficientes de gestão, permanecendo desconhecido da grande maioria da população local. Não há nenhuma sinalização indicativa do Cemitério dos Escravos dificultando e, em muitos casos, impossibilitando o acesso ao bem cultural.

É preciso ressaltar ainda que mudanças recentes na legislação urbanística municipal comprometem a integridade do Cemitério dos Escravos, tornando a antiga área rural onde está inserido o bem tombado em área de expansão urbana. Empreendimentos imobiliários avançam nas proximidades do Cemitério, criando demandas como alargamento da via, que pode transformar drasticamente o entorno do bem cultural.

Não poderia deixar de ressaltar que no dia 2 de novembro, data consagrada aos Finados, acontece no Cemitério dos Escravos uma celebração, dedicada às almas dos que foram sepultados no local. Em sua obra, Álvaro Diniz relata que a celebração acontece desde a década de 1980, tendo sido iniciativa de sua mãe, Dona Judith Belém Diniz. Percebendo o estado de abandono em que o Cemitério dos Escravos se encontrava, em 1987, Dona Judith teria solicitado ao Prefeito Municipal de Santa Luzia a realização de obras para recuperação do espaço, considerado sagrado pela família. Atendendo a esta solicitação, foi enviada pelo município uma equipe de trabalho ao local que realizou a reconstrução do muro de pedras, a reestruturação do cruzeiro central e a construção da passarela de cimento. Em agradecimento pela execução dos trabalhos foi celebrada uma missa no dia 2 de novembro de 1987 às 17:00 horas. Após a celebração, foi oferecido um café para os participantes, tradição mantida pela família no decorrer dos anos. Não seria esta celebração digna de registro como bem integrante do patrimônio imaterial de Santa Luzia?

Neise Mendes Duarte (Historiadora, analista do Ministério Público de Minas Gerais)

NOTAS:

1 DINIZ, Álvaro. Santa Luzia: Minha terra, sua história- História de Minha Terra. Santa Luzia, 2008. 2 DINIZ, Inês Gonçalves. Aqui Nascemos. Belo Horizonte: Arnaldo Gomes de Almeida Filho Editor, 2005.
3 http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/brtbusca/index.php?action=results&query=domingo+pinto+carneiro. Acesso 30-10-2015.
4 O Sargento-Mór Pacheco Ribeiro era um português que, ao ficar cego, teria feito uma promessa a Santa Luzia das Minas Gerais. Como recebeu o milagre e voltou a enxergar, ele se mudou com suas três filhas para Santa Luzia e construiu o templo, a Igreja Matriz de Santa Luzia, localizada na Rua Direita, no Centro Histórico tombado em nível estadual e municipal.
5 Dâmaso José Diniz e Silva era de Contagem- Fazenda da Cachoeira. A via onde se localiza o Cemitério dos Escravos possui hoje seu nome.
6 https://familysearch.org/pal:/MM9.3.1/TH-1-14765-22448-36?cc=2177275&wc=M5FD-6TP:370855201,370855202,370941801#uri=https%3A
%2F%2Ffamilysearch.org%2Frecapi%2Fsord%2Fwaypoint%2FM5F8-SPV%3A370855201%2C370855202%3Fcc%3D2177275 (Óbitos 1805, Out – 1829, Maio e Óbitos 1824, Ago – 1873, Nov)
7 VILLATA, L.C. e LIBBY, D. C. A Coroa e a Escravidão: de Lisboa ao Rio de Janeiro. In Resende, M.E. L. e VILLATA, L.C. A Província de Minas 1. Belo Horizonte: Autêntica Editora, Companhia do Tempo, 2013.
8 http://seer.ucg.br/index.php/habitus/article/view/2478.
9 O CEDEFES- Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva é uma Organização Não-Governamental, sem fins lucrativos, filantrópica, de caráter científico, cultural e comunitário, de âmbito estadual, com sede e foro na cidade de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil. Seu objetivo é promover a informação e formação cultural e pedagógica, documentar, arquivar, pesquisar e publicar temas do interesse do povo e dos movimentos sociais. http://www.cedefes.org.br/index.php?p=inst_apresentacao
10 A Revolução Liberal de 1842 foi um dos movimentos sediciosos mais importantes que agitaram o Brasil durante o Império. Com a declaração da maioridade e a coroação do jovem Imperador Dom Pedro II, em maio e junho de 1842, nas duas mais importantes províncias do Império, São Paulo e Minas Gerais, irrompeu o movimento armado articulado pelo Partido Liberal contra a ascensão ao poder do Partido Conservador. Foi um movimento revolucionário de feição partidária que em São Paulo foi liderado pelo padre Feijó e o Coronel Tobias de Aguiar. Em Minas Gerais, por José Feliciano Pinto (futuro Barão de Cocais), Cônego Marinho, e Teófilo Otoni, dentre outros.


Um comentário:

  1. Como descendente de escravos acho interessante terem mantido o local. Pretendo visitar, pena meu pai, neto de uma escrava, não ter condições de visitar. Obrigada pela matéria.

    ResponderExcluir

Instagram Vitrine